A propósito de Euclides Cunha

 
"THALES RIBEIRO DE MAGALHÃES (MUSEU SALLES CUNHA - ABO-RJ)
"DIRLENE DIÓRIO (MUSEU HISTÓRICO DO EXÉRCITO - FORTE DE COPACABANA)

Levanta-se hoje uma história real que poucos romances de ficção teriam a coragem de engendrar.

Trata-se da tragédia que tem como protagonista principal o escritor Euclides da Cunha.

Ao entrar armado com um revólver, intempestivamente, à procura de Anna, na casa de Piedade, cego pelo ciúme, Euclides da Cunha atirou em Dinorah, irmão de Dilermando de Assis, a quem procurava. (1) Presume-se que, ao vê-lo armado, Dinorah tenha-lhe virado as costas, à procura de refúgio.

A bala penetrou na altura das cristas espinhosas da omoplata, situada sobre a coluna vertebral. (3) (2) (6)

O projétil foi retirado em São João del Rei, em 1916, pelo dr. Antonio Ferreira Ribeiro da Silva, na Santa Casa da Misericórdia local.

EUCLIDES DA CUNHA
Nosso imortal escritor, nasceu em Cantagalo, Estado do Rio de janeiro, em 20 de janeiro de 1866. Era filho de Manoel Rodrigues Pimenta da Cunha e Eudóxia Moreira da Cunha.

Estava na Escola Militar, em 1888, quando foi expulso devido a um ato de rebeldia. Reincorporado, saiu segundo tenente em 1890.

Casou-se com Ana Ribeiro em agosto de 1890. Sua esposa era filha do major Solon Ribeiro, o homem que, a 15 de novembro de 1889, entregou a intimação ao Imperador para que abandonasse o Brasil. Reformou-se como capitão, deixando o exército em 13 de julho de 1896.

A 14 de agosto de 1897 embarca para Canudos, enviado pelo "O Estado de São Paulo". Dessa sua viagem nasceu "Os Sertões", escrito em S. José do Rio Pardo, São Paulo, entre 1898 e 1901.

Euclides da Cunha pode ser considerado o primeiro repórter brasileiro, por ter sido o primeiro a ser enviado por um jornal a um teatro de operações de guerra.

Suas viagens eram constantes, o que lhe causava problemas familiares, pois sua esposa encontrara em Dilermando de Assis, amigo da família, a fuga para um coração que não mais amava o marido.

O escritor, desconfiado, ainda mais com o nascimento de seu último filho, loiro e de olhos azuis, contrastando com os demais, perdeu a tranquilidade. Dizia a Coelho Neto, seu grande amigo, que seu filho "mais parece com um pé de milho num cafezal". (1)

Em 15 de novembro de 1909, não encontrando a esposa em casa, armou-se com um revólver e partiu para a Estrada Real de Santa Cruz, onde moravam os irmãos Dilermando e Dinorah de Assis, e onde sabia que iria encontrar a esposa.

Ao vê-lo chegar, Dinorah também se armou. No tiroteio que se seguiu à entrada intempestiva do escritor na casa dos irmãos Assis, Euclides da Cunha acertou uma bala na espinha de Dinorah. Com o seu revólver Dilermando de Assis, campeão de tiro ao alvo, atingiu mortalmente a Euclides (2), depois de também ser atingido por balas.

No rumoroso processo que se seguiu, Dilermando foi absolvido por legítima defesa e casou-se com Ana Ribeiro, a viúva do escritor.

Seu irmão Dinorah ficou paralítico, com a bala alojada na espinha.

Dilermando de Assis, tempos depois, talvez uns 4 anos (não foi possível determinar a data com precisão), foi transferido para o batalhão do exército sediado em São João del Rei, levando o irmão paralítico a quem sustentava. Nesta cidade fez amizade com o médico radiologista dr. Francisco Lafayette Rodrigues Ferreira, filho do Conselheiro Lafayette, que ajudava nas cirurgias efetuadas no Hospital da Santa Casa da Misericórdia pelo dr. Antônio Ferreira Ribeiro da Silva (3), médico local de muito renome.

O dr. Ribeiro da Silva examinou Dinorah, foram feitas radiografias e, após alguns exames complementares, com a aquiescência do paciente, foi marcada a cirurgia para a retirada da bala alojada na coluna vertebral de Dinorah. Além do dr. Ribeiro da Silva, atuaram os médicos Francisco Lafayette Rodrigues Pereira e Alceste de Freitas Coutinho na cirurgia efetuada na Santa Casa de Misericórdia de São João del Rei e com sucesso, pois o paciente voltou a andar.

Sabe-se que algum tempo depois foi para Porto Alegre, onde se matou.

RIBEIRO DA SILVA (1868-1928) (7)
"Era filho do tenente do exército Pedro Ribeiro da Silva, nasceu na capital de Goiáz a 31 de julho de 1868 e ali iniciou no seminário episcopial o curso de preparatórios, completando no mosteiro de São Bento desta metrópole, em cuja Faculdade de Medicina doutorou-se com 22 anos de idade, nos começos de 1891.

Regressando logo à terra natal, foi nomeado presidente da Intendência da capital goiana e, decorrido pouco tempo, secretário da Instrução Pública do Estado, elaborando importante projeto de reforma do ensino. Ocupou a cathedra de physica e chimica do antigo Lyceu e, a 15 de novembro de 1891, o Congresso Constituinte do Estado elegeu-o vice-governador, cargo que abandonou com a queda da situação política operada naquela circunscrição da República. Em 1898, transportou-se para Minas, indo residir em Perdões, onde constituiu família. Mudou-se para São João D'el Rey, onde viveu durante 15 anos, desempenhando os seguintes postos: professor de physica da Escola de Pharmacia, chefe de clínica cirúrgica da Santa Casa da Misericórdia, delegado de hygiene do Estado, médico legista da polícia, inspector escolar, inspector sanitário-municipal, membro do diretório do partido Republicano Mineiro". Era jornalista, poeta theatrólogo. Publicou um romance - "O Apostata" - sob o pseudônimo de Sergio Guido, menção honrosa da Academia Brasileira de Letras em 1923. Naquela época a defesa de tese era necessária para a obtenção do grau de doutor. A tese do dr. Ribeiro da Silva denomina-se "Estudo clínico das dyspepsias nas crianças", Cadeira de Clínica médica e cirúrgica de crianças. Catedrático era o dr. Candido Barata Ribeiro.

Foi apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 12/08/1890 e sustentada em 24/12/1890, afim de obter o grau de doutor em Medicina. Foi impressa na Typografia Economica de Machado & Cia, rua da Carioca, 83, cerca de 70 páginas.

A obra médico cirúrgica do dr. Ribeiro é impressionante pela amplitude seu campo de ação que abrangia praticamente todo o organismo. Os recortes de jornais da época e anotações clínicas mostram "extirpação da glândula de Bartholis, curetagens de abscessos tuberculoses, secção de bridas cicatriciais produzidas por queimaduras e autoplastia consecutiva, sclerotomia reclamada por glaucoma crônico, ablação de fibroses cutaneas pesando cerca de 800 gramas, iridectomia, extração de cataratas pelo processo de Galezwcky, extração de Kysto sub-apone-vrótico da palma da mão, dissecção de amygdalas, extirpação de polypos das fossas nazaes, cura radical de hydrocelles inguinaes em criança, talha hypogástrica para retirada de corpo estranho na bexiga". São cirurgias executadas em Perdões, Carrancas, Bonsucesso, Lavras, São João Del Rei e arredores de Minas Gerais. Em seu consultório, instalado em sua residência, fazia ele mesmo exame de escarro, urina, sangue, era oculista, aplicava pneumotórax, fazia pequenas cirurgias e, dizem, até dentes extraiu.

A sua vasta produção literária abrangeu aspectos médicos, sociais e atualidades de sua época. Recortes de jornais mostram a sua solidariedade ao professor Moncorvo (o pai), que protestou contra a exposição de uma "criancinha de 3 anos numa casa de espetáculos, mediante pagamento, exposta à curiosidade pública em razão do desenvolvimento anormal de seu sistema piloso".

Há ainda um protesto contra a invasão de remédios estrangeiros, em prejuízo dos nacionais. Outro é um brado violento contra a indústria do fumo, "nociva à espécie humana". Todos foram publicados no Jornal Cidade de Barbacena, em 1921.

A participação na comunidade foi muito grande. As anotações e jornais da época fazem referência ao Curso de Venereologia, com várias palestras, a última das quais sobre a "herpes genital, a sarna e pediculose do pubis".

Um outro recorte de jornal convida para a palestra "O sigilo" à qual poderão "comparecer todas as pessoas decentemente vestidas". Em agosto de 1923, há o "Curso popular de syphillis e moléstias venéreas". Numa das aulas "fez as pessoas presentes a oportunidade de conhecer, através do microscópio, o micróbio do horrível flagelo da humanidade "treponema pallidum". Organizava as comemorações da Semana Santa que primavam por procissões e cânticos, para os quais compunha hinos especiais, com música de maestros da cidade, um deles o maestro Carlos Passos de Andrade. E foi mais longe, ao compor, de parceria com Oscar Gamboa, duas revistas teatrais: "O boi fugiu" (um prólogo, 2 atos, 3 apoteoses e 27 números musicais), levada à cena no Teatro Municipal de São João Del Rei pela empresa Faleiro & Cia, com a orquestra do maestro Targino da Matta, em 18/03/1918 e "Ver para crer", com um prólogo, 2 atos, 8 quadros e 26 números musicais, no mesmo local e ano.

Trilhou o caminho da poesia, colaborando com sonetos, poemas e acrósticos em jornais da época e em grande número.

Em suas anotações ainda encontramos dois casos clínicos descritos com detalhes: "um caso de gastro-ectasia aguda post partum" (1899) e "Um caso de sodoku em São João Del Rei", este provocado por mordida de ratazana, que, no dizer do autor, "não constituem propriamente raridades clínicas. Simplesmente, até hoje, nossa literatura médica nada assignala a tal respeito no Estado de Minas" (1928).

Entre suas revistas médicas estão números da "Gazeta delli ospeddi cliniche" (18/08/1917), "La presse medicale" (22/06/1916) e "Medicina Clínica" (15/02/1917). Nesta última estão assinalados como colaboradores efetivos Miguel Couto, Fernandes Figueira, Miguel Pereira e Carlos Chagas.

Deslocava-se a cavalo pelos arredores, fazendo partos e atendendo a chamados urgentes. Segundo relato de seus familiares, quando chegava a cavalo em sua residência, um garoto das vizinhanças corria logo para segurar o animal e levá-lo à cocheira. O dr. Ribeiro o abraçava, passava a mão em sua cabeça e dizia: "Este menino há de ser um grande homem". Esse menino foi Tancredo Neves. O primeiro discurso de Tancredo, ainda na escola primária, por ocasião do Dia da Árvore, também foi preparado pelo dr. Ribeiro da Silva. (5)

A bala hoje integra o acervo do Museu Salles Cunha.

Eis algumas fórmulas encontradas em suas anotações:

Para diarreia - uso interno
Xarope de ratanha 20g
Mucilagem de goma 8g
Cré preparado 2g
Tome uma colher de chá de 2 em 2 horas

Para a linfangite dos seios
Icthiol 2g
Canela em pó 10g pílulas
Tome 3 pílulas ao dia

Para o terçol
Vaselina 10g
Ox. Amarelo de mercúrio 0,05g
Para tópico

Para frieiras
Água destilada 250 grs
Álcool canphorado 5 grs
Sulfato de Zinco 15 grs
Sulfato de Cobre 1 gr
Para tópico

Dentifrício
Alcoolato de mentha 250 grs
Phenosalyl 50 grs
Tintura de benjoim 30 gotas

Bibliografia
1. Magalhães, Thales R. de - À margem da História - Euclides da Cunha. Bol. Serv. Odont. IASERJ - v. 4, nº. 9, p. 22-5, jan/dez, 1982.

2. Andrade, Jefferson - A vítima esquecida de Euclides da Cunha "in" Anna de Assis - História de um trágico amor. Rio de Janeiro, Codecri, 1987, p. 165-75 e 236.

3. Fox-Sublinhas "in" Assis, Dilermando Candido - Um Conselho de Guerra - A morte do Aspirante da Marinha, Euclydes da Cunha Filho. Defeza do Tenente Dilermando Candido de Assis. Rio de Janeiro, Typografia dos "Annaes", 1916, p. 165-6.

4. Magalhães, Thales R. de - Recordando o pasado Bol. Serv. Odont. IASERJ - v. 3, n.º 8, p. 26-35, jan/dez, 1981.
5. Nunes, Augusto - Orador precoce "in" Tancredo, São Paulo, Nova Cultural, 1988, p. 15-29.

6. Serviço Médico-Legal do Districto Federal - Auto de Corpo de Delicto - 16/08/1909 - (FLS - 15, 16, 17) - Processo crime n.º 1909 (Euclides da Cunha) - 1ª Vara Criminal do Antigo Distrito Federal. Apelação criminal n.º 118 - 2ª Câmara da Corte de Apelação do Antigo Distrito Federal. Documentos obtidos no Museu da Justiça, Rio de Janeiro, RJ

7. Brasil Médico - Necrológico - v. 42, n.º 36, p. 1018-9, 8 set. 1928.

Nota do autor: Fox era o pseudônimo de Antonio Ferreira Ribeiro da Silva, que assinava uma coluna no "Jornal de Barbacena" sob o título "Sublinhas".