Odontologia no Brasil (1ª Parte)

 
Christine Saraiva
Dos barbeiros até a regulamentação dos cursos, e depois a criação dos Conselhos, foram muitos os desafios enfrentados. Hoje, com quase 158 mil cirurgiões-dentistas espalhados por todo o país, a Odontologia brasileira é reconhecida por sua qualidade, ma ainda há muito trabalho a ser desenvolvido, especialmente no que se refere à prevenção.

O registro de cuidados com os dentes remonta à época do descobrimento. De acordo com observações dos primeiros colonizadores e de crânios encontrados em Lagoa Santa (MG) e em regiões litorâneas de São Paulo e do Paraná, os índios tinham dentes bem implantados, com poucas cáries, mas acentuada abrasão, provavelmente devido a mastigação de alimentos duros. De acordo com dados disponíveis, a tribo kuikuro, do norte do Mato Grosso, chegava inclusive a preencher as cavidades dentárias com resina de jatobá aquecida, o que cauterizava a polpa e funcionava como uma obturação, depois de endurecida.

Dos barbeiros às primeiras cartas de dentistas - Com as expedições colonizadoras e a criação das capitanias hereditárias, entre 1534 e 1536, começaram a chegar ao Brasil os mestres de ofício de várias profissões, entre eles os barbeiros, encarregados de tratar os dentes e que eram regulados pelo Regimento do Físico-mor de Portugal, datado de 1521.

No Brasil, os primeiros documentos a normatizar o exercício da arte dentária foram a Carta Régia de Portugal, de 9 de novembro de 1629, e o Regimento do Ofício de Cirurgião-mor, de 1631. O Regimento chegava inclusive a prever multa de dois mil réis para quem tirasse dentes sem licença. Também marcou o início da legislação relativa à Odontologia o Regimento ao Cirurgião Substituto das Minas Gerais, de 9 de maio de 1743, que estabelecia aos pretendentes o pagamento de uma taxa e prestação de exame.

Em 17 de junho de 1782, foi criada a real Junta de Protomedicato, que passou a ser responsável pela concessão de cartas e licenças, extinguindo os cargos de físico-mor e cirurgião-mor. Era nessa época que Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, exercia seu ofício, tendo sido preso, em maio de 1789, por participar da Inconfidência Mineira. Entre os seus pertences apreendidos, estavam dois fórceps, uma espátula e duas chaves de extração.

O termo dentista só apareceu, em 1800, com o Plano de Exames proposto pela Real Junta, que estabelecia que o candidato ao ofício precisava passar por uma avaliação de conhecimento parcial de anatomia, métodos operatórios e terapêuticos.

Em 1808, com a vinda da família real para o Brasil, a colônia passou a se desenvolver a todo o vapor e em 18 de fevereiro daquele mesmo ano foi criada a Escola de Cirurgião, no Hospital São José na Bahia, e nove meses depois, em 5 de novembro, a Escola Anatômica Cirúrgica e Médica do Hospital Militar e da Marinha, transformada mais tarde em Faculdade de Medicina.

No ano seguinte, o sistema de concessão de licenças de trabalho mudou mais uma vez. Em janeiro de 1809, o príncipe regente, D. João, aboliu a Real Junta de Protomedicato e seu trabalho voltou a ser exercido pelo físico-mor e cirurgião-mor.

Em 15 de fevereiro de 1811, foi concedida a primeira carta de dentista do Brasil ao português Pedro Martins e Moura. Em 23 de julho, foi a vez do primeiro brasileiro: Sebastian Fernandez de Oliveira. Entre os profissionais de destaque da época estava o francês Eugenio Frederico Guertin, que recebeu sua carta em 3 de março de 1820. Com consultório na rua do Ouvidor, 126, no Centro do Rio, Guertin publicou em 1829 um pequeno livro intitulado "Avisos Tendentes à Conservação dos Dentes e sua Substituição", considerado, de acordo com registros, a primeira publicação do gênero no Brasil. Devido a qualidade de seu trabalho, em especial na área de prótese, foi nomeado inclusive dentista do imperador e da imperatriz.

A independência e os primeiros decretos - Após a independência do Brasil, a primeira carta de dentista foi autorizada em 1º de junho de 1824, para Gregório Raphael da Silva. Quase 4 anos depois, em 30 de agosto de 1828, d. Pedro I alterou novamente a concessão das cartas de licença, extinguindo os cargos de cirurgião-mor, físico-mor e provedor-mor e passando a responsabilidade para as câmaras municipais e justiças ordinárias. A descentralização, no entanto, era prejudicada pela falta de profissionais aptos a examinar os candidatos em todos os lugares.

A partir de 1840, começaram a chegar os dentistas vindo dos Estados Unidos. Em 1849, foi publicado o Guia dos Dentes Sãos de autoria do americano Clinton Van Tuyl. No ano seguinte, foi criada a Junta de Higiene Pública, que passou a ser responsável por ações saneadoras e pela regularização de profissionais vindos de universidades estrangeiras.

Aos poucos, foram promulgados decretos que procuravam regulamentar de maneira mais eficaz a prática da Odontologia. Em 1851, o decreto n.º 828, exigia que os médicos, cirurgiões, dentistas, boticários e parteiras apresentassem as cartas de habilitação à Junta. Ainda naquele ano, um outro decreto criava estatutos para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tentando melhorar o ensino e combater os charlatães.

A realização de exames nas faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro para obter o título de dentista foi determinada pelo decreto n.º 1.754, de 14 de maio de 1856. Os testes eram divididos em duas partes. A prática consistia na extração de um dente de cadáver e a teórica avaliava o conhecimento dos temas: Anatomia, Fisiologia, Patologia e Anomalias dos Dentes, Gengivas e Arcadas Alveolares; Higiene e Terapêutica dos Dentes, Descrição dos Instrumentos do Arsenal Cirúrgico do Dentista, Teoria e Prática de sua Aplicação, e Meios de Confeccionar Peças de Próteses e Ortopedia Dentária.

Em 1868, surgia a primeira entidade de classe odontológica no Brasil: o Instituto de Cirurgiões-Dentistas, que foi dissolvido logo no ano seguinte, só voltando a funcionar 21 anos depois.

Ainda no final da década de 1860, foi publicada, por João Borges Diniz em 1869, a primeira revista odontológica brasileira, a Arte Dentária. O momento era de grande evolução científica e tecnológica nos Estados Unidos e muitos dentistas brasileiros foram para lá estudar. Entre eles, estava Carlos Alonso Hastings que ao voltar ao Brasil fez alterações no motor Weber-Ferrey, que passou a ser conhecido mais tarde como motor Hastings.

A criação dos cursos de Odontologia - Em 1879, o decreto n.º 7.247, de 19 de abril, determinava que ficassem anexos, a cada faculdade de Medicina, uma escola de Farmácia, um curso de Cirurgia Dentária e um curso de Obstetrícia e Ginecologia.

Dois anos depois, um outro decreto de n.º 8.024, de 12 de março, estabelecia que os cirurgiões-dentistas para poderem exercer a profissão deveriam passar por exames sobre Anatomia, Fisiologia, Histologia, Higiene e Operações e Próteses Dentárias.

O ano de 1884 marcou a criação oficial do curso de Odontologia nas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro através do decreto 9.311, datado de 25 de outubro. Uma vitória que contou com a importante colaboração do então diretor da Faculdade do Rio, Cândido Figueira de Sabóia e do professor preparador Thomas G. dos Santos Filho. Nessa época, a faculdade já contava inclusive com Laboratório de Cirurgia e de Prótese Dentária.

Aos poucos, foram surgindo novas escolas. Em 1898, foram criadas mais duas: uma em Porto Alegre e a Escola de Farmácia, Odontologia e Obstetrícia, na Faculdade de Medicina de São Paulo. Em 1904, foi fundada a Escola de Farmácia e Odontologia de Juiz de Fora. Em 1912, o curso da Faculdade de Farmácia e Odontologia do Rio de Janeiro e, em março de 1916, a Faculdade de Farmácia e Odontologia do Ceará.

Nesta época, merece destaque a atuação de Augusto Coelho e Souza, considerado o Pai da Odontologia Brasileira. Em 1900, ele publicou o Manual Odontológico, que abordava todos os aspectos da profissão, preenchendo uma lacuna na literatura nacional. Responsável pela formação de gerações de dentistas e importante representante do Brasil em congressos no exterior. Coelho e Souza contribuiu ainda mais ao publicar, em 1922, o livro História da Odontologia no Brasil desde a Era Colonial até Nossos Dias.

Paralelo a toda movimentação criada pelos novos cursos, surgiu também a preocupação como o exercício legal da profissão. O decreto federal 15.003, de 15 de novembro de 1921, estabeleceu restrições para o exercício da arte dentária em todo o país, que passou a se limitar aos profissionais habilitados por faculdades de Medicina oficiais ou equiparadas, aos graduados em escolas ou universidades estrangeiras que se habilitassem junto às faculdades nacionais e aos professores de universidades estrangeiras que obtivessem licença junto ao Departamento Nacional de Saúde Pública.

Em 1925, no Rio de Janeiro, o curso de Odontologia passou para a Faculdade de Odontologia, que se separou definitivamente da Faculdade de Medicina em 1933.

Criação dos Conselhos - O ano de 1964 marcou a criação dos Conselhos Federal e Regionais de Odontologia, instituídos pela Lei n.º 4.324, de 14 de abril. Dois anos depois, em 4 de abril de 1967, uma outra Lei de n.º 5.254 prorrogou o prazo do CFO Provisório, tendo sido regulamentado pelo Decreto n.º 68.704, de 3 de junho de 1971.

Na época, com a existência dos Estados do Rio de Janeiro, capital Niterói, e da Guanabara, capital Rio de Janeiro, foram criados dois Conselhos Regionais, que passaram a funcionar com Diretorias Provisórias. A divisão permaneceu até o ano de 1974, quando os dois CROs passaram a funcionar em conjunto.

O processo de formação e estrutura dos Conselhos exigiu um intenso trabalho de equipe. As dificuldades foram minimizadas pela cooperação dos colegas e demais entidades. Apesar de todos os desafios, dos anos 80 até hoje registrou-se um crescimento da Odontologia do ponto de vista técnico e científico e também a conquista crescente em relação à expressão social e política da classe. Nesse processo, merece destaque a atuação dos Conselhos na luta pela valorização e reconhecimento profissional.

Momento atual - É certo que hoje a Odontologia atravessa, não só no Rio mas em todo o país, um momento delicado, especialmente devido ao excesso de profissionais e queda no poder aquisitivo da população. Por isso, fazer uma retrospectiva da história é mais do que oportuno para lembrar que cada época guarda as suas dificuldades e que mesmo assim vale a pena lutar.